quinta-feira, 4 de junho de 2015

Crianças de rua: “Capitães da Areia”, Jorge Amado

Cena do filme "Capitães da Areia", 2011

Pensar a violência no âmbito literário é um desafio, e relacioná-lo a partir de uma análise sociológica é ainda maior. A violência vista sob a ótica da literatura nos permite pensar como esta aparece como parte constituinte da cultura nacional, e como o próprio Scollhammer afirma, é possível percebê-la “como elemento fundador”. De modo que a obra literária nos permite participar da simbolização da violência e nos dá suporte para explorar a criatividade e transgredir os possíveis limites que são expressos na forma escrita. E com base nas apreensões sociológicas dos diversos autores que pontuam essa temática, perceber como o fenômeno da violência perpassa os contextos sociais e que afetam diretamente os indivíduos nas mais diversas sociedades, e principalmente a sociedade brasileira, vista como “um dom de Deus e da Natureza” (Chauí, Marilena. P.8).
Pensando nisso, recorremos na obra de Jorge Amado intitulada “Capitães da Areia”, para refletir sob o olhar da crítica social do autor sobre os meninos de rua, e nos aportando teoricamente quanto ao fenômeno identificado dentro do universo destes. Não pretendemos fazer uma apreensão da narrativa em si, como a descrição das personagens e todo o desenrolar da obra de Jorge Amado. O que de fato queremos, é fazer uma análise sociológica da temática das crianças de rua e como a violência é refletida nesse contexto, mas não cessaremos de recorrer em alguns dos discursos proferidos pelo autor em sua obra.
“Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem” (AMADO, 1984, p.25).  Mas não se trata de quaisquer crianças: são meninos de rua no contexto histórico da década de 30 no Brasil. São os “Capitães da Areia”, que percorrem as ruas e vielas da Bahia de todos os santos. Jorge Amado, através de sua obra vem, ao seu modo, fazer uma (ou várias) denúncia quanto à questão das crianças abandonadas do território baiano. Ele procura narrar em suas páginas, à vida cotidiana desse grupo que vive nas ruas da capital baiana, cometendo pequenos delitos, furtos e aventuras. Amado de modo intencional vem denunciar o descaso por parte das autoridades do Estado e da própria sociedade, que veem nessas crianças verdadeiros bandidos e que merecem punições cabíveis a seus atos. Percebemos isso quando Martuccelli vem dizer que O sentido da violência deve ser procurado menos no interior da subjetividade do ator, e mais a partir do referencial das redes sociais e das coações materiais legítimas onde o indivíduo está colocado”.
Mesmo sendo crianças, Amado vem nos dizer que são tratados como homens, pois desde cedo conhecem as artimanhas de como sobreviver, mesmo no abandono, a violência e os prazeres.
É evidente que o drama vivenciado por essas crianças retrata um problema dentro do seio do Estado e da própria sociedade que as vê apenas como marginais, quando ao lermos alguns dos discursos pontuados pelo autor na reportagem publicada no “Jornal da Tarde”, especificamente na página de “Fatos policiais” que diz:

Esse bando, que vive da rapina, se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente, devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos e uma vida criminosa. São chamados de “Capitães da Areia porque o cais é o seu quartel-general. E têm por comandante um molecote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos, não só ladrão, como já é autor de um crime de ferimentos graves praticado na tarde de ontem”.

Mas qual será mesmo a razão da existência de crianças de ruas? A partir da análise de Eric Macé, podemos verificar os motivos dessa presença dos menores abandonados. O autor afirma que diversas pesquisas apontam para a presença desses menores nas ruas. E esta não é explicada de maneira exclusiva pela miséria de favelas, ou pela decomposição das famílias. Estas mesmas pesquisas, de acordo com Macé, se dá pela morte dos pais de muitas dessas crianças que ficam órfãos, nos quais estes por vezes são obrigados a vagarem nas ruas, mas ao mesmo tempo, muitos desses fogem por conta própria: muitos pela educação rígida e severa que tinham dentro de casa.
Pelo que vemos, há toda uma problemática que merece ser questionada em torno da questão das crianças abandonadas. E de quem é a culpa? Não adianta o senso comum afirmar que é apenas culpa dos pais que não sabem dar educação. O Estado, bem como a sociedade promove tal presença desses menores nas ruas. As desigualdades sociais, bem como, medidas preventivas de combate, são um caso sério e que merecem reflexão.
O Estado procura suprir sua ineficiência com medidas paliativas. Este, nesse contexto procura a seu modo, usar o seu poder do uso da violência física, como bem coloca Weber, barrar os atos cometidos por esses menores através de medidas repressoras, no âmbito de instituições consideradas como “socializadoras”.
É nessa questão que o título da reportagem do “Jornal da Tarde”, que Amado vai expor o modo como às autoridades viam o âmbito dos reformatórios, lugar onde os meninos que praticam atos ilícitos eram colocados, e diz o seguinte:
Um estabelecimento modelar onde reinam a paz e o trabalho – um diretor que é amigo – ótima comida- crianças ladronas em caminho da regeração- acusações improcedentes- só um incorrigível reclama- “reformatório baiano” é uma grande família- onde deviam estar “Os Capitães da Areia”.

Interessante ver esta instituição na narrativa de Jorge Amado como uma “grande família”. O autor vem contrapor o discurso anterior através da fala de uma mãe desesperada que escreve para o mesmo jornal dizendo:

“Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não arranjasse tirar ele daquele inferno em vida, não sei se o desgraçado viveria mais seis meses. O menos que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia. O diretor de lá vive caindo de bêbado e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos dos pobres [...] É por essas e outras que existem os ‘Os Capitães da Areia’. “Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no reformatório”.(Maria Ricardina, Costureira)

Quando o líder dos “Capitães da Areia” foi levado preso para o reformatório, foi atirado dentro da cafua. Tratava-se de um pequeno quarto, onde não era possível ficar de pé, pois não havia altura necessária, e também não era possível ficar deitado, pois não tinha comprimento. Estava com sede e um copo de água foi oferecido a ele. Mas era pouca e mal matava a sede. Um dos funcionários do reformatório lhe oferece um prato de barro com uma água escura e com alguns caroços de feijão. Com toda a velocidade Pedro Bala engole e nem percebe que estava extremamente salgado. Pede água e não mais lhe oferecem. Em meio ao cubículo do qual tem que se acomodar, sente fortes dores corporais e além do mais, tem de aguentar o insuportável odor de suas próprias fezes durante dias.
O próprio Macé vem afirmar que mesmo após a adoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, muitas extorsões, como o autor pontua, por parte da própria polícia e de grupos militares, tem discutido acerca dessa questão da intervenção que vem de frente a essas crianças, que vive em meio a riscos da vida dura nas ruas, tanto riscos físicos, morais e até mesmo químicos. Acontece que, mesmo os que são dessa política que confina esses menores em casas de reeducação, com projetos que visam à retirada desses das ruas, essa questão não é de fato resolvida.
Esse modelo institucional surgiu ainda na década de 30 e 40 com nome de internato. E no ano de 1948 houve uma sensação de uma maior preocupação desses pequenos e que ganhou uma repercussão que atingiu um nível internacional. Com a criação do Fundo das Nações Unidas para a infância, comumente conhecida como UNICEF e no ano 1964, com o surgimento da FUNABEM houve a possibilidade de uma melhor coordenação centralizada e de uma fiscalização sobre o que se passava dentro dessas entidades. De acordo com Mirian Debieux Rosa:

Ao lado desta história de cuidados e descuidos, pode se constatar um discurso que contém o imaginário social sobre a questão, um discurso social de dupla mão a respeito destas crianças: o discurso da pobreza e o discurso do perigoso.[...] A representação social que associa os pobres às classes perigosas tem como consequência que as crianças e adolescentes pobres sejam vistos como perigosos ou potencialmente perigosos - os pequenos bandidos. É, portanto, sobre eles que incide, preferencialmente, o aparato repressivo-policial ou repressivo assistencial.

Pelo que vemos, não trata apenas de jogar a culpa para um lado ou outro. Toda essa problemática gira em torno de uma questão que não é só do Estado, mas da família e da própria sociedade.
É impossível acreditar que haja uma representação que permeia a mente de um povo que se diz ter orgulho de ser brasileiro, por ser livre de preconceitos e discriminação. Se ufanar por ser generoso, ordeiro e generoso, como Marilena Chauí pontua, e indignar-se com a existência de crianças de rua, com as chacinas dessas mesmas; sendo que ao mesmo tempo, na vida real posta em ação, se revela uma sociedade que tolera e admite a existência de milhões de crianças sem infância, de crianças abandonadas.

Algumas considerações

A obra de Jorge Amado vem nos trazer a luz questões de inteira relevância, ao fazer uma denúncia sobre a vida dos menores abandonados da Bahia. Mesmo sendo uma obra literária, Amado faz um profundo resgate quanto ao descaso de um problema que ocorria na década de 30, mas que ainda se encontra fortemente arraigado na sociedade brasileira. Infelizmente isso ainda ocorre, e vemos quão atual é sua discussão, se levarmos em conta que a própria analise sociológica resgata esse tema em suas considerações acerca da vida social.
A obra Capitães da Areia vem nos alertar que essa problemática precisa ser considerada e de certo modo, ser revertida em possíveis soluções, a partir de pesquisas, da própria educação, da família e do modo como as instituições estão se posicionando nessa questão, bem como o Estado está arcando com condutas desfavoráveis. Medidas paliativas certamente não hão de resolver, se faz necessário buscar no cerne de onde o problema está se proliferando. É necessário reformas das políticas públicas. Mas isso é uma questão que pode ser refletida em outra ocasião.

Gláucia Santos de Maria